Quem diz que as mulheres não percebem nada de vinhos, está muito bem enganado. A prova está aqui, em mais uma entrevista da nossa seção, onde apresentamos Patrícia Santos — enóloga criadora do vinho Rosa da Mata e de muitas outras ótimas referências. A enologia surgiu na sua vida por mero acaso. Mas, afinal, os vinhos sempre estiveram traçados no seu caminho. Natural de Canas de Senhorim — distrito de Viseu — é enóloga há cerca de 20 anos e uma apaixonada pelo campo e pela química.

O seu percurso começou quando foi estudar para a Universidade de Trás-os-Montes. Desde então, os vinhos se tornaram sua vida e Patrícia tem vindo a realizar projetos no Dão e na Beira Interior. Portugal é, de facto, a sua casa e por nada o trocaria.

Vamos descobrir tudo o que Patrícia tem para nos contar? Acompanhe a entrevista.

Como você começou na enologia?

Não escolhi a enologia por nenhum motivo em especial, nem mesmo por ligação familiar. Nunca tive vinhas nem produção de vinho na família, mas sempre fui uma pessoa muito ligada ao campo e ao exterior, então não me via a fazer nada que me obrigasse a estar fechada dentro de uma fábrica ou de uma casa. Por isso, escolhi cursos que estivessem ligados à área exterior e achei que enologia seria interessante, até porque tinha muita química que é algo que eu gosto bastante. Foi a minha primeira opção, seguindo-se Engenharia do Ambiente e Engenharia Florestal, entre outros cursos relacionados com o ambiente e a natureza. Acabei por entrar no curso e fui estudar para a UTAD (Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro), onde acabei por me apaixonar pela enologia. Hoje não me vejo a fazer outra coisa senão isto. Foi um acaso que estava destinado.

Qual foi o seu primeiro contacto com esse mundo?

Eu fiz estágios de vindima enquanto estava a estudar, aqui perto de Nelas, distrito de Viseu. Mas o primeiro sítio onde trabalhei a sério – a primeira adega – foi nos Vinhos Borges, no Dão. Foi aí que conheci o Anselmo Mendes – enólogo dos vinhos do Dão – e criámos uma relação amigável e profissional. Mais tarde convidou-me para trabalhar com ele e eu aceitei, claro. Ele é o meu mentor, é uma pessoa única e muito humilde. Tem uma forma genuína de ensinar tudo o que sabe e tem muito prazer em tudo aquilo que faz. Para mim ele é realmente genial e admiro-o imenso.

Em que projetos você está trabalhando hoje?

Atualmente trabalho com o Anselmo na produção de vinhos do Dão e da Beira Interior. Fazemos parte do projeto Dois Ponto Cinco Vinhos de Belmonte, na Beira Interior, e também dos vinhos Primado, na Quinta do Coladinho em Santa Comba Dão. Para além disso, produzo também o meu próprio vinho, um vinho de autor – o Rosa da Mata. Estamos, ainda, a começar agora um projeto com a Quinta da Ramalhosa, em Tondela. Recentemente fui, também, convidada para fazer vinho em Espanha.

“Hoje não me vejo a fazer outra coisa senão isto.
Foi um acaso que estava destinado. “

As regiões em que mais produz são Dão e Beira Interior?

Sim, dos meus vinhos tenho um tinto do Dão e vou ter em breve um branco da Beira Interior que produzi este ano. Estou a produzir onde o Anselmo produz o vinho dele, na Sociedade Agrícola Cova da Raposa, que tem a marca Pombo Bravo. Com esta parceria, acabamos por ajudar na produção dos vinhos deles também. Já em Espanha, fui convidada para trabalhar em Arribes del Duero, num projeto ainda muito embrionário e no qual estamos numa fase de experiência. Vamos ver no que vai dar.

Qual é a casta que você gosta mais de trabalhar?

A minha casta favorita toda a gente sabe que é o Alfrocheiro. Ela está presente no meu vinho de autor e é a casta que representa verdadeiramente o Dão e que me representa a mim própria. Tem uma personalidade que acho muito semelhante à minha. É a casta que eu mais gosto, tem uma expressão única. É uma casta antagónica, bastante difícil de descrever. No fundo, é exatamente como eu sou enquanto pessoa.

Durante todo o processo da produção de vinho, qual você acha que é a decisão mais difícil de ser tomada?

Para mim, a mais difícil de todas é aquela que se toma antes do vinho ir para a garrafa. Depois disso, não há mais nada que se possa fazer. O momento do lote final e do engarrafamento é o momento em que temos de ter a certeza se aquele vinho é o que queremos mesmo colocar na garrafa. Uma vez que ele já está engarrafado, já não dá para voltar atrás.

E o que você acha que pode estragar um vinho?

Ui… tanta coisa! Pode ser a própria uva que não esteja bem, a forma como se conduz a fermentação, alguma distração… Durante o armazenamento, na fase em que esperamos que se faça a maloláctica, por exemplo. Ou na fermentação lenta, em que basta uma pequena distração para estragarmos a colheita toda. Muita coisa pode acontecer… Também ao longo do envelhecimento do vinho em barrica, nem todos têm capacidade para tal. Um vinho jovem tem muito mais probabilidade de se estragar do que um vinho mais velho.

E em qual dessas fases você acha que o papel do enólogo assume mais importância?

Acho que o papel do enólogo não passa a ser mais importante no momento da vindima ou da fermentação alcoólica. A parte difícil é depois da desencuba até ao momento em que temos os vinhos estabilizados. Eu acabo por dizer que nós, enólogos, somos um pouco os médicos dos vinhos – é esse o nosso papel. Através da prova e das análises físico-químicas, devemos estar sempre muito atentos para que nada corra mal e para que o vinho não tome outro caminho e se estrague. Estamos a falar de um produto alimentar que é, no fundo, um ser vivo. Tem bactérias, tem leveduras e substratos e uma série de enzimas. É super-rico em tudo e muito fácil de se estragar, muito mais do que as pessoas pensam.

Qual é o seu estilo de vinho?

Eu gosto de tintos – jovens – sem madeiras e de brancos com, pelo menos, um ano de garrafa e com barrica. O meu estilo é um vinho jovem que não tenha muita extração de cor, que seja elegante e que não tenha taninos muito intensos. Um vinho que tenha aromas mais florais do que frutados e seja exuberante no nariz. É preciso que no nariz desperte uma vontade de beber e na boca tem de ser prazeroso. Isso para mim é o meu reflexo de um tinto e de um branco com barrica, que tenha um bocadinho de mais estrutura e força. Um vinho que mantenha os aromas varietais e seja viciante. Esse é o meu estilo.

Do lado do consumidor, o que é importante observar num vinho?

Para mim o mais importante no consumidor, nem é o facto de ele perceber de vinho. O mais importante é o que temos de oferecer às pessoas: o prazer. Beber tem de ser um prazer e a pessoa tem de gostar. Isso é realmente o mais importante. Se souber mais sobre vinho, melhor. Mas não se pode deixar influenciar pela opinião de uma pessoa ou pela classificação atribuída àquele vinho em questão. Nós somos todos pessoas diferentes e temos todos gostos diferentes. Se bebeu e gostou é o que importa. Além disso, é preciso perceber que nem todos os momentos são iguais num vinho, depende muito do nosso estado de espírito, se estamos a comer, qual é o acompanhamento… Tudo isso são condicionantes. O mesmo vinho pode ter expressões diferentes para a mesma pessoa em momentos diferentes. Acaba por ser muito subjetivo, não há regras.

Tem alguma sugestão de harmonização curiosa?

Eu gosto de tintos leves para entradas ao invés dos rosés. Gosto de utilizar o rosé para sobremesas ou para alguns pratos. Acho que não pode haver mitos e regras para o que fica bem. Às vezes há brancos que não acompanham bem um determinado peixe, mesmo que as pessoas insistam que o branco deve acompanhar peixe. Depende de muitos fatores, não existem regras. Temos de conhecer os vinhos e os pratos que vamos escolher. A partir daí, conseguimos fazer bons casamentos.

“Para mim o mais importante no consumidor, nem é o facto de ele perceber de vinho. O mais importante é o que temos de oferecer às pessoas: o prazer.”

Se você tivesse de produzir seus vinhos fora de Portugal, que região escolheria?

Obviamente que iria para a região de Champagne, em França, aprender a fazer um bom espumante. Não com o objetivo de ficar lá a vida toda, porque gosto muito do meu Portugal e acho que cá temos tudo o que precisamos para fazer vinhos de excelência. Mas gostava de experimentar fazer noutros sítios, especialmente naqueles que são únicos. Gostava de ir a Itália experimentar fazer um vinho de uvas passas, aprender com eles algumas coisas diferentes que nós não fazemos por cá. Mas a verdade é que escolhia Portugal, sempre. Podemos fazer tanta coisa por cá.

Tem alguma história curiosa sobre um vinho que você já produziu?

Posso talvez contar a história curiosa, por exemplo, de um Dia de Portugal em que o Presidente bebeu um vinho produzido por mim antes da cerimónia e, durante o discurso, desmaiou. Nunca tive a certeza se foi por causa do meu vinho, mas nunca se sabe. Foi uma história bastante engraçada e caricata. De certeza que existem muitas mais histórias para contar – já são 20 anos a fazer vinho. Já aconteceram muitas coisas, já ia morrendo numa cuba, por exemplo. Nesse momento tive medo, não tive o cuidado que devia e ia morrendo com o peso das massas. Também tenho algumas ocasiões em que os produtores achavam que aquele não era o melhor vinho do mundo e não queriam prosseguir com o engarrafamento – um desses casos é o Rufete das Vinhas Velhas Dois Ponto Cinco – e por alguma insistência acabámos por engarrafar e hoje é o sucesso que se vê.

Qual é a sua maior fonte de inspiração?

Em primeiro lugar, aprendi imenso com o Anselmo Mendes. Desde que o conheci – há 20 anos atrás – que o meu sonho era ser como ele. Ainda não consegui, mas quem sabe um dia. Mas obviamente que a minha maior inspiração é o meu marido, o meu pilar que me ajuda imenso. Ele e os meus filhos são a minha maior fonte de inspiração e são o motivo pelo qual todos os dias me levanto para trabalhar.

Qual é o seu conselho para os futuros enólogos?

Não tenham medo de lavar caixas, saírem sujos e de trabalhar muito fisicamente. Assim também se aprende e muitas das vezes precisamos começar por baixo para crescermos com humildade. É essa humildade que nos vai ajudar a sermos bons profissionais no futuro.

Você sentiu alguma diferença por ser mulher nesse mercado?

Claro que sim. Não tive as mesmas oportunidades que alguns dos meus colegas tiveram. É claro que não ganho aquilo que um homem ganha. Tive de me tornar uma trabalhadora independente para conseguir ter mais trabalho, pois era muito complicado. Não vou dizer que acho que temos igualdade — para o bem e para o mal — porque não temos. Não é uma crítica, mas as coisas têm a sua evolução natural e é preciso algum tempo para colmatar algumas dessas falhas. No entanto, melhorou imenso desde que comecei a trabalhar na área. Já existem muitas mulheres com papeis importantes na enologia, excelentes produtoras e enólogas. Acho que nós mulheres somos um pouco mais trabalhadoras e mais empenhadas. Talvez seja por isso que começam a aparecer mais mulheres.

E o que podemos esperar para breve? Quais são as novidades?

Vamos lançar, em breve, o Rosa da Mata 2018 e – até ao final do ano de 2020 – o Rosa da Mata Branco da Beira Interior. Em relação aos outros projetos, ainda há muita coisa a marinar. Talvez saia um espumante do Dão feito por mim e posso dizer, também, que vou lançar uma Síria diferente na Beira Interior – da Dois Ponto Cinco – e mais um Cabernet, quem sabe…

Vamos ficar à espera de provar todas essas novidades!


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