O ano é 1807. Napoleão Bonaparte ordena que as tropas francesas invadam Portugal. Enquanto a família real foge em direção ao Brasil, os portugueses buscam proteger os seus bens mais preciosos dos saques dos invasores. A forma que encontram de fazê-lo é enterrar aquilo que possuem de mais valioso isto inclui, claro, os vinhos.

Assim, inúmeras garrafas de vinho acabam escondidas em buracos no chão, sob as videiras, as adegas e os lagares. Essa se torna uma prática comum durante a invasão, especialmente em Trás-os-Montes, uma região onde o cultivo de uvas e a produção vinícola têm origem secular.

Com a expulsão definitiva dos franceses, em 1811, os portugueses voltam a desenterrar os seus bens e se deparam com uma feliz surpresa: os vinhos não apenas não estavam estragados, como apresentavam um sabor ainda melhor.

Por ter passado por uma fermentação no escuro e em temperatura constante, o vinho tornou-se apaladado, palhete, com graduação de 10 a 11 graus e leve gás natural.

Surgiu assim o “Vinho dos Mortos“,  também chamado de “Morto de Boticas“, por ser cultivado principalmente nesse concelho transmontano. O local apresenta um grande orgulho do tradicional vinho, considerado símbolo da “sagacidade e da resistência do Povo de Boticas”.

O Vinho dos Mortos continua vivo

A tradição do Vinho dos Mortos permanece viva, embora sejam poucos os que ainda o fabriquem. Reconhecida em 2006, a Indicação Geográfica Protegida do Vinho Regional Transmontano surgiu como forma de garantir a qualidade e autenticidade dos vinhos de Trás-os-Montes. Nessa denominação, encontra-se o Vinho dos Mortos, que pode ser produzido em toda a região, embora só haja, atualmente, um produtor oficial do Morto de Boticas.

Pertencente ao viticultor Armindo Sousa Pereira, a Adega Vinho dos Mortos, em Boticas, dedica-se exclusivamente a esse vinho histórico. Embora exista desde 1792, somente em 2008 entrou de vez no mercado e passou a seguir uma série de regras de qualidade impostas pela certificação. O seu proprietário afirma ter aprendido com os avós e os pais os saberes do Vinho dos Mortos, que a família costumava vender em um comércio no centro da cidade.

O processo de produção é longo, com a plantação sendo iniciada em novembro e a colheita feita em outubro do ano seguinte. Após a pisa das uvas, o vinho permanece no lagar durante seis meses e, em seguida, continua a sua fermentação nas pipas. Por fim, a bebida passa pela fase de certificação e é engarrafada.

Só então as garrafas são enterradas e cobertas por saibro. Ali ficam durante no mínimo seis meses. Os produtos finais podem ser adquiridos no local, no site da adega e em algumas lojas de Portugal, como a Garrafeira Nacional. A produção anual é de cerca de 6 mil garrafas.

Foi também em 2008 que o concelho de Boticas ganhou um museu, o Repositório Histórico do Vinho dos Mortos, dedicado à cadeia de produção da bebida. O local tem o objetivo de homenagear o vinho que se tornou uma das maiores referências da região e compartilhar com moradores e visitantes a história dessa tradição.

Considerado um patrimônio imaterial de Boticas, o Vinho dos Mortos se tornou uma importante fonte de turismo para a região e foi abraçado por outras tradições locais.

Em 2010, por exemplo, a típica festa “Sexta-feira 13” apresentou a bebida como o vinho oficial do evento. Uma boa combinação se levarmos em conta o teor fúnebre que envolve tanto a data quanto o nome do vinho.

O vinho que atravessou o Atlântico

O Brasil herdou muitas das tradições portuguesas e, recentemente, o Vinho dos Mortos se tornou uma delas. A Quinta do Olivardo, em São Roque (SP), celebra essa tradição mensalmente, com o enterro de garrafas, acompanhado de fado ao vivo e de vários pratos da gastronomia portuguesa. Durante o ritual, visitantes são convidados a enterrar as garrafas que desejam adquirir e voltar para buscá-las dali a seis meses.

O Vinho dos Mortos “alegra os vivos”, diz Olivardo Saqui, que fundou a adega e restaurante Quinta do Olivardo em 2007. Atualmente, a propriedade conta com mais de oito mil pés de uva plantados, em dois hectares de terra, e produz artesanalmente 20 mil litros de vinho por ano.

Os vinhos dos mortos são parte dessa produção e podem ser feitos com diferentes uvas da quinta: Cabernet Sauvignon, Merlot, Chardonnay ou Bordô Suave.

Em ambos os lados do Atlântico, o Vinho dos Mortos tende realmente a trazer alegria. Tanto que outros povos também descobriram as vantagens do vinho envelhecido debaixo da terra, embora seus métodos sejam diferentes. Na Geórgia, uma jovem produtora de vinhos armazena a bebida em grandes vasos tradicionais de argila, que são mantidos durante meses sob a terra. Na França, muitos vinhos são guardados em cavernas subterrâneas.

Embora não carreguem a história de uma guerra, nem um nome impactante como o do Vinho dos Mortos, todas essas bebidas são exemplos da riqueza que a terra pode fornecer aos vinhos mesmo depois da colheita das uvas. Ao mesmo tempo, são demonstrações de respeito a uma tradição e uma cultura. Contudo, acima de tudo, o Vinho dos Mortos é um símbolo de renascimento e de celebração da vida, algo que, das festas dionisíacas às missas cristãs, sempre teve tudo a ver com o néctar dos deuses.

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